segunda-feira

Vê-se mais o sol quando as luzes se apagam

 Acorda ainda tonto, esticado como uma tábua de madeira ao sol. Levanta vagarosamente a cabeça ainda pesada do choque elétrico que havia levado horas antes - e, foda-se, se dói. Em frente a si, dois vultos de bata branca, um com cara de maricas e uma doçura a acompanhá-lo. Enquanto tenta ainda entender o que lhe aconteceu, o médico diz-lhe qualquer coisa sobre as suas análises diagnosticarem HIV positivo. Olha para o gajo, incrédulo. Enquanto ainda decide se lhe enfia um soco no focinho ou um chuto no cu, qualquer coisa sobre 30 dias de vida ecoa pelo consultório. Ri-se e vira costas. Nem sabe se há de rir de tamanha estupidez ou de arrancar os olhos ao cabrão. Pega nas roupas, lança um último olhar de desprezo e atira pés ao caminho, percorrendo o túnel de cores esbatidas à procura da saída daquele manicómio. Nada pode matar um Woodroof em 30 dias, muito menos uma merda de uma doença de paneleiros inventada por médicos mimados. Graças a Deus, quando toca num gajo é com o punho e é para fazer estragos. E assim há de ser, até que a castanha e seca terra texana cubra o seu couro.   
As putas vieram e foram embora. Mais whisky, mais coca, mais de tudo e mais de mais nada. Outra vez mais de tudo e não há volta a dar. As palavras dos médicos reviram e tornam a virar e a mastigar no fundo da sua consciência. Por muito que tente esquecer o dia que ficou para trás, aquela merda não o larga. Como se o cabrão do médico estivesse a falar a sério. Como se houvesse sequer a mínima hipótese. Foda-se, é impossível. Petrifica. Esfrega os olhos como se estivesse a acordar de um pesadelo. Raios o partam se não está ali escrito, naquele computador do diabo, que também está exposto quem usa drogas e quem tem sexo sem proteção. Sexo sem proteção. Nem se lembra da última vez que usou um preservativo, para ser honesto. Sente-se a imobilizar, sente pura raiva subir-lhe espinha acima com a velocidade de um trovão numa noite de tempestade. Começa a suar e o seu corpo gela. Estava acabado, fodido. Ia morrer.     
É esta a estória, ainda longe de acabar, do cowboy que transformou vontade de viver em anos de vida. Drogas, álcool, apostas ilegais. Rodeos e sexo fácil. Ron é um cowboy machista, homofóbico e aldrabão. E, agora, é também um seropositivo a 30 dias do fim. 
Até ver Dallas Buyers Club, nunca reconheci a Matthew McConaughey nada sequer perto do potencial, da estaleca e da tarimba requerida para desempenhar um papel desta magnitude. Tive-o sempre como ator vulgar, preso ao sotaque sulista e à imagem de menino bonito das comédias românticas e dos dramas onde representa o típico marido de classe média, nos seus trinta-e-tais, ou o solteirão à procura da próxima amante.     
Em DBC, McConaughey redime-se e faz um papel apaixonante. Dizem que há males que vêm por bem e, pois bem, talvez o cancro que lhe roubou anos de vida e o levou tão perto do fim também, tenha porventura, e por outro lado, deixado por recompensa a experiência, a profundidade e a maturidade que lhe permite encarar este papel como se fosse dele ou sobre ele. Ou talvez fosse mesmo dele, porque também McConaughey sabe o que é lutar como Woodroof lutou. Sabe o que é acordar todos os dias e riscar mais um dia no calendário em direção ao fim iminente, como Woodroof riscou. E por saber sentir como sua a pele de Woodroof, McConaughey dá resposta a um excelente argumento e assume aquele que é, até ao momento, o papel da sua vida no filme da sua vida. E como não basta um ator mediano a fazer um grande papel, há ainda espaço para outro - Jared Leto é Rayon, um travesti seropositivo que Ron conhece no hospital. Rapidamente a relação entre ambos se desenrola numa improvável amizade e numa missão em comum. Leto veste Rayon de forma excêntrica e melodramática, levando para si todo o protagonismo em vários pontos do filme, conduzindo-nos de olhos vendados pelo labirinto e convidando-nos a segurar o detonador da bomba relógio que é a vida do seu personagem. 
Nem todos conhecemos um Rayon, é certo. Mas todos conhecemos um Woodroof. E se há algo capaz de cruzar um Woodroof com um Rayon, esse algo, é só a vida. E é exatamente sobre os plot twists da vida que nos ensina Dallas Buyers Club. Um filme profundo e irónico, por vezes cómico, mas sempre trágico. 

Por Tiago da Rocha

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