sexta-feira

Quando eu morrer ponham-me este sorriso no rosto

Quando eu morrer ponham-me este sorriso no rosto. 
Façam do final da minha história a minha última festa, uma balada gostosa, como eu sempre gostei. Deixem tocar os tambores e as pandeiretas, pintem tudo de cores fortes e vibrantes, mas deixem a linha ténue do negro, essa cor que tanto disse de mim um dia.

Atingido o fim dos meus trabalhos na terra, digam-me ao ouvido que fui uma pessoa melhor a cada sorriso, a cada toque. Que fui boa mãe, boa filha, boa esposa. 

E cantem, cantem muito, que a vida torna-se mais bonita, mais leve, como que mais melódica. Harmoniosa!

Dancem juntos. Deem as mãos e digam que se amam, que se querem, o quanto estão felizes. Digam tudo, tudo! Que o último baile seja o primeiro de muitos no paraíso.

Quando eu morrer, lancem fotografias ao ar e respirem as recordações que vos caem aos pés. Que o meu último respirar seja o desabafo de paz, de sinceridade e de pureza. Os meus olhos, espelhos de um sorriso e os meus ouvidos… Ah, como é bom escutar-vos a cantar!

Já posso ir. Outra festa espera-me além, na ponta de uma luz pequenina. 

Agora… Vou deixar-me brilhar!













Na foto: Anastacia. Fotografia: Ana Emme.

domingo

Domicílio

O lugar.
Mais que paredes, portas, janelas…
Pessoal, fechado, quente.
Construído numa vida 
de dia-a-dia em relação
cuja identidade se entrelaça
com o que se é
como pessoa
como família
com o mundo.
Intimidade.

O encontro.
De pessoas
com a terrena assimilação da finitude.
Num abafado espaço transbordante:
Dor. Medo. Dúvida. Apelo.
O rarefeito oxigénio da esperança
Dança cambaleante 
No fio da navalha.

A Morte espreita risonha,
Como coruja em noite de solidão,
Confiante da luta vencida.

Alguém responde:
Presença.
Olhar.
Silêncio.
Palavras escolhidas.
Mãos.
Entrega num trabalho possível.

À saída.
A Morte,
Continua na sua presença constante, 
E balbucia no seu riso vencedor:
Que ingenuidade.
Semente seca em estéril pó sentimental,
Num deserto infecundo e irracional.

Mas,
Na vitória,
A Morte
Treme interrogativa. 


Por Carlos Moreira
29 de Janeiro de 2009

sexta-feira

Dogma 95 e a apologia do “cinema nu”!

A 13 de março de 1995, quatro realizadores dinamarqueses, Lars von Trier, Thomas Viterberg, Kristian Levring e Sören Kragh Jacobsen, assinaram o Manifesto que contém aquele que, nos anos que se seguiriam, apareceria como o mais importante código normativo na cinematografia mundial: o Voto de Castidade.
Este pequeno e direto documento estipula uma série de normas para a realização e produção de filmes, terminando com as seguintes palavras: «O meu objetivo supremo é revelar à força a verdade das minhas personagens e lugares. Juro fazê-lo recorrendo a todos os meios disponíveis e a custo de qualquer bom gosto e quaisquer considerações estéticas». Viterberg salienta que o Manifesto do Dogma 95 não se relaciona com os aspetos económicos da produção cinematográfica. Ou seja, o filme pode ser de baixo ou elevado orçamento, contando que o realizador siga o Voto de Castidade.
O Dogma 95 surgiu com o intuito de contrariar uma certa «tendência» no cinema atual através de uma estratégia back to basics, uma «ação de resgate», como foi apelidado pelos seus fundadores.
Seguindo o Manifesto, a ação do Dogma 95 poder-se-á resumir em duas linhas: uma negação do individualismo cinematográfico e uma negação da superficialidade. Apesar de o coletivo ter considerado que «o Dogma 95 é um protesto contra os filmes feitos à americana» e «também contra o sistema de programas de ajuda do estado para produzir filmes que sigam a linha de Hollywood, mas na Europa», talvez esta interpretação seja exagerada e desviante em relação às suas mais importantes intenções. Embora as regras que compõem o Voto de Castidade tenham sido redigidas por Trier e Vinterberg, a ideia original do Dogma 95 veio do primeiro. Os filmes anteriores de Trier tinham duas características principais: formalmente, eram fascinantes complexidades técnicas; tematicamente, eram reflexões intemporais sobre uma Europa contraditória e amoral.

O Dogma 95 insere-se, assim, numa onda de ceticismo e de dúvida sobre o estado das coisas – clima característico das eras de transição. Num tempo em que não há verdades e as ilusões parecem esgotadas, o que é que se pode fazer? Procurar a verdade pela ilusão. Foi isso o que o Dogma 95 se propôs fazer. Seguindo a ideia de Kragh Jacobsen, o Dogma tem um objetivo muito parecido com o do «unplugged»: devolver a pureza das coisas às coisas que já não são puras ou, nas palavras de Vinterberg, «atingir o cinema nu».

Por Eurico Cunha.

quarta-feira

A metamorfose

Algures numa estante, onde se perfilavam vários livros, impregnados daquele cheiro a bafio tão característico e que nos faz recuar prazerosamente no tempo, destacava-se um exemplar que principiava com o fenómeno da metamorfose, onde um homem tomava a forma de um repugnante invertebrado. Peguei-lhe e, assim que iniciei a leitura, ficou-me na retina aquela subliminar mensagem: a substância, por vezes, deve prevalecer sobre a forma. Essa lição reverberou incessantemente no meu subconsciente até à data, levando ao entendimento de que é possível uma mudança de fundo sem se perder a essência e o âmago do que quer que seja.
A evolução é inevitável. Os tempos são outros, o cheiro do papel e o deleite no seu folhear, sujando de tinta as extremidades dos dedos num momento de interiorização, foi trocado pelo ecrã luminescente, que grita cores garridas e alternadas como um caleidoscópio. Foi neste espirito de rendição que conjurei a transformação da fanzine Aprumus num blogue.
É um novo início para um projeto que se transferiu do papel para o monitor, possibilitando, aos seus criadores, satisfazerem a sua vontade criativa.
Mantemo-nos, assim, comprometidos com a intenção nobre de instigar a curiosidade e a pesquisa, para que a cultura passe a fazer parte do quotidiano de cada um que se identifique com o trabalho desenvolvido.
Este será um local de reflexão descontraída sobre os mais variados temas culturais, sem imposições, onde imperará a liberdade no sentido lato. Será um espaço de todos e para todos, onde cada um poderá fazer parte do mesmo como integrante ativo, se assim o desejar.
Enviem-nos os vossos textos ou trabalhos gráficos, que se enquadrem no conceito deste nosso projeto, e garantimos uma apreciação cuidada dos mesmos.

A cultura alimenta a alma e uma alma emagrecida torna o corpo num autómato acrítico.

Por Hugo Durães.